20 outubro 2010

Chuveirinho que fala

crônica publicada ontem no Descomplicadas, da revista Naipe:
http://revistanaipe.com/blogs/chuveirinho-que-fala/

No outro dia

Foi ontem. A impressora chegou, dentro de uma mochila que trazia o cheiro dele. Ela, que não sentiu o cheiro, procurou por um bilhete que sabia não existir. Botou a mochila de lado, a cachorra estava no quarto, era evidente que sentia sua falta. A primeira coisa que fez foi cheirar a mochila. Cheirou, cheirou, cheirou, enquanto abanava o rabo. Abanava muito o rabo. Ela pensando "não faz isso comigo, Cacauazinha, vamos esquecer que é melhor, não há nada mais a fazer..." Mas a cachorra dizia não, não entendia o porquê. Por que, se era tão bonito, tão intenso? Voltava a cheirar e a abanar o rabo como se fosse um sinal de que ele não desaparecera. Como se naquele dia último dos últimos ele não tivesse lhe dado palmadas como se fossem as últimas, dizia isso no olhar, que só ela percebeu, a cachorra estava eufórica, aproveitando as carícias sem pensar a respeito. Mas ela percebia e já começava a maldizer essa sua percepção exacerbada. Há tempos, já no fim do tempo deles, que ela percebia sua ausência, "longe daqui, aqui mesmo", e não entendia nada, se perdia no silêncio dele. Como, se até então era uma troca de palavras tão gostosa? Por que o silêncio, o que fiz de errado além das coisas já esclarecidas?, pensava. E como uma criança assustada, chorava. Como uma criança, só conseguia a atenção dele quando fazia birra. Só assim para ser ouvida. Ela sabe que não foi de repente, mas tudo lhe apareceu de forma muito repentina, como se ele tivesse mudado a posição de um botão falar com ela, não falar, que ligava e desligava sem motivos aparentes. Ser cruel, não ser cruel. Carinho, aspereza. Depois do fim foi que ela se deu conta de que tudo vinha sendo programado, quis se afastar dela ainda com ela, para que lhe fosse mais fácil, e ela que se exploda, ele já não se importava mais. Botou na cabeça que queria esquecê-la e seguiu. Não pensou em diálogo, torturando-lhe da maneira que mais lhe doía, ele sabia disso, tirando-lhe o direito de saber o que se passava com quem ela gostava e, mais ainda, de saber algo que lhe tocava diretamente. Depois também ela percebeu que ele, a partir do momento que começou a brincar de apertar botões, não era mais ele. Ele já havia sido perdido há muito, ela só precisava perceber e viver o luto. E no luto que ela vive não vem só lembranças boas, vem a crueldade, a da fase de brincar de apertar botões e a de antes também, crueldades pontuais que lhe feriram muito. Os momentos bons, as risadas, as gargalhadas, as viagens, as fotos, as conversas, as caminhadas, os textos, os planos, a proximidade... O que fazer com tudo isso? São passarinhos girando ao redor da sua cabeça, passarinhos amarelinhos e barulhentos.


*escrito em 27/10/2009

13 outubro 2010

numa foto amarela

é tanta saudade
guardada em imagem
é tanto nós dois
tão perto, tão longe

é tanto amor
que não sobrou pra depois.

10 outubro 2010


plantas de fumo
folhas feias
cheiro bonito.


*fev 2008, assentamento União da Vitória (Fraiburgo/SC)

09 outubro 2010

Escrevendo a tristeza

.....Às vezes me faço triste e fico regurgitando pensamentos reticentes. Meus ombros pesam e meu estômago faminto teima em rejeitar a comida. À mesa, penso em esquecer do mundo e viver comigo mesma, isolada numa pasárgada inabitada. Passar quanto tempo queira eu ao lado do meu monólogo interior, respondendo apenas à própria voz. Conversar apenas com um ser que não fala e que ignora a consciência e o conhecimento esnobe e ignorante. Ouvir só palavras silenciosas. Poder escrever desenhos esfumaçados nublados com a neblina que vem de dentro de um momento. Abrir a boca num bocejo bocejado. Saudar a preguiça espreguiçando um olá descompromissado que vagarosamente ecoa uma canção de ninar. Acordar quando estiver cansada de dormir e dormir quando o sono fechar os olhos. Olhar para o tempo com olhos de ressaca não dissimulada e soltar um grunhido debochado. Arrotar letras iletradas, soluçar bolhas estapafúrdias e calçar calçados apertados. Escutar o tic-tac-tic-tac-tic-tac do relógio, observar o vai-e-vem do pêndulo e não pensar nas horas que não existem. Depressivamente ser depressiva sem que isso deprecie. Ser uma escolha involuntária desobrigada de obstinação. Abster-se de abstinências. Tecer sensações emaranhadas em molduras de vento esvoaçante num chumaço de ar branco.
.....Cansar de rabiscar empurrando o cursor. Parar.


*escrito em 2007

02 outubro 2010