27 julho 2009

Da saudade

.....Às vezes me perguntam como posso não sentir saudade. Mas o fato é que eu sinto saudade. Sinto saudade daquilo que sei que não mais terei, daquela pessoa que não mais verei ou que só verei, quem sabe, por sorte do feliz acaso. Sinto saudade do passado e, às vezes, do futuro.

.....Quando tinha quinze anos e ia fazer uma viagem para o exterior, meu namoradinho de então me perguntou se sentiria saudades. Respondi que não; no máximo, sentiria sua falta (o que é diferente de sentir saudade). Seriam apenas quinze dias; se fosse para sentir saudades, nem daria tempo.

.....Saudades eu sinto da casa onde cresci. Era uma casa antiga, dessas de chão de tábuas, que estala quando a gente pisa. Dessas que têm um espaço oco por baixo, uma espécie de porão onde não se pode entrar. Por causa disso, não se podia pular nem correr nos quartos, pois se o fizesse, as coisas das estantes tremiam e podiam até cair.
.....Era uma casa grande, com oito cômodos espaçosos. Mas era como se só tivéssemos sete; um deles ficava trancado, pois o forro, que era de madeira na casa toda, havia despencado. Como era para ser um quarto de empregada e nós não tínhamos empregada (pelo menos que morasse em casa), ele ficou lá, abandonado, a abrigar coisas que não mais tinham utilidade.
.....Era também uma casa de goteiras. Nos dias de chuva, era um ploc-ploc-ploc. Mas ainda bem que os furinhos eram solidários e se alternavam nesses dias, de modo que não precisávamos de muitas panelas ao mesmo tempo.
.....O quintal da casa era enorme. Tinha até uma parte de terra, onde eu tinha plantado meu mamoeiro. Ele ficava num cantinho, meio desajustado, meio capenga, mas mesmo assim deu muito mamão. Foi esse quintal que abrigou meus incontáveis gatos, minha tartaruga, meu cachorro e as muitas festas que minha mãe e eu fazíamos.
.....A varanda da frente era elevada e protegida por uma grade que batia na cintura. Ali meu cachorrinho Muscchi enfiava a cabeça por entre os ferros e latia para as pessoas que passavam, pregando-lhes baita susto. Quando estávamos entediadas, era só sentar por ali e observar o movimento (quase que em câmera lenta) daquela cidadezinha ou esperar que algum conhecido parasse para conversar. Sempre passava por lá uma mulher que tinha problema mental e era conhecida por todos como Ana Banana. A Ana andava pela cidade toda a fechar os portões das casas. Era engraçado! Não faz muito, minha mãe me disse que ela morreu; ela, a Ana Banana de minha infância.
.....Não tínhamos vizinhos. De um lado, havia um centro espírita que mantinha um albergue noturno. Eram bêbados, andarilhos, casais que brigavam, famílias com crianças... um punhado de gente que ficava na calçada a esperar pelo hora de poder entrar. Vira e mexe, batiam palmas em casa para pedir comida, roupa, dinheiro para interar a passagem, para comprar remédios, para isso e para aquilo. Quando achava que devia, minha mãe os atendia prestativa e conversava um monte. Uma vez até abrigou uma mulher e os filhos em casa. Por isso, desde muito nova, aprendi a ouvir a história sofrida das pessoas. Do outro lado, havia um prédio comercial, onde, por algum tempo, funcionou o psicotécnico da minha tia. Era um barato! No quintal de casa, tinha uma janela que dava para uma parte do psicotécnico. Vivíamos fazendo dela um telefone-sem-fio...

.....Foram bons os tempos nessa casa da rua Marechal Deodoro, 314. Ali passei doze anos da minha vida, desde os cinco até dezessete. Ali, naquela casa antiga e acolhedora de uma pacata cidade do interior de São Paulo.
.....Dela eu sinto saudade. Ela que foi e já não é. Que hoje só existe no saudosismo de minhas lembranças. Aos dezessete, minha mãe e eu resolvemos nos mudar de cidade e a casa teve de ser vendida. Reformaram-na e a dividiram em duas. Deixaram-na parecida com uma prisão: colocaram grade nas janelas, subiram um muro na varanda, instalaram um interfone (onde nem a campainha funcionava) e fizeram uma garagem com portão eletrônico, onde nem havia uma garagem. Para isso, destruíram nosso jardinzinho de flores que surgiam e o pinheiro gigante que eu vira ainda pequenino no vaso que minha mãe ganhara de minha avó.

* agosto 2006

Um comentário:

  1. Eu não cheguei a conhecer essa casa, só de vista e de fotos, mas sua descrição me levou pra lá... pra infância também.
    Bjos

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