19 janeiro 2010

Onze pequenas folhas de badaladas

.....É madrugada. Como sempre é. Você está no quarto fingindo que dorme, apesar de quase 24, seu avô a trata como uma garotinha, não a deixa dormir tarde, tem que levantar antes do almoço servido sempre às 11h30 ou, o mais tardar, ao som das doze badaladas do sino da igreja à frente. Você não aguenta mais, não aguenta mais esse sino que não a deixa esquecer das horas; de quinze em quinze minutos o barulho anuncia que o tempo está passando e as coisas piorando. Você está na cama, afundada num colchão molengo, rodeada por um jornal de literatura, um livro de medicina alternativa, crônicas do Sabino, um Calvino, envelope aberto, três cadernetas de anotação, uma de filmes, livros e espetáculos vistos, outra disso tudo a ver e outra para anotar suas despesas; a lâmpada do teto, amarela, deve ter no máximo 60 W, o velho fazendeiro seu avô é muquirana; no criado-mudo da esquerda, um abajur com uma lâmpada mais fraca ainda, que você encontrou no guarda-roupas, quando a empregada abriu para guardar o enfeite de natal, até o próximo. Você acabou de ler trechos do Rascunho, o jornal de literatura, e percebe que lhe é difícil escrever em terceira pessoa; arranjou mais três livros para sua lista de futuras aquisições, pensa em como seria escrever ficção sem fortes traços autobiográficos, pedir para um poeta não falar de si é pedir para que não escreva, você leu há pouco, pensa na falência da sua mãe, na sua nova posição de quem espera o diploma para se declarar desempregada, em quem vai ler o que você escreve, isso anda lhe incomodando. Pensa. O que fazer com tantos e com tão pouco. Será que ele leu seu último trabalho. Pensa longe, pensa agora, no que foi, no que ainda vem. E se o seu avô se levantar, como faz quase todas as noites, e vir a luz do seu quarto, bem em frente ao dele, acesa, você nem mesmo poderá fingir que dorme, tantos são os papéis espalhados pela cama. E essa vocação para contemplação num mundo que exige, o tempo todo, a produtividade, de que falou Noll agora pouco, sobre o protagonista de Lorde; o que fazer com isso que poderia estar sendo dito sobre você. Há tempo não faz contato com a psicóloga, não responde e-mails gostosos, três, que já deveria tê-los respondidos há meses; você vai responder, por que não o faz de uma vez e para de ficar se cobrando. Por que não coloca interrogação. Por que não faz exercícios físicos, você sabe que esse cansaço que a acompanha desde o despertar vem do estresse, e alguma atividade física aliviaria cansaço e estresse; você sabe que não vai ao clube nadar pois os dias estão nublados e nunca se sabe a que horas irá chover, sabe-se que choverá, e isso não é desculpa, você já até tentou nadar aí na piscina da casa dos seus avós, mas dez braçadas bastam para que a atravesse, não dá, dá tontura, muito pequena. Hoje pelas 22h você nadou, rodopiou na água, fez bem, o friozinho a obrigava a se movimentar, uma vantagem de nadar em noite fresca; refletir também, o escuro faz refletir, não havia estrelas, amanhã chove, uma casa como essa, um fundo desses, tão mal aproveitados, tudo enfeite ostentação, ah se tivesse um lugar assim. Você pensa em reler, em operar o punho que lhe dói, na piada pronta que é o seu novo pijama estampado de moranguinhos, que sua avó lhe deu ontem, I’m only a little strawberry. Seu avô acorda, você escuta a descarga da suíte, sente medo como sentia aos oito, apaga a luz por precaução, e se ele abre a porta, deixa só o abajur, tira a coisarada da cama, tem fome, tem tosse, calor, pele oleosa, espinhas, sente falta muita falta dos restaurantes vegetarianos, de um amor perdido, de um amor novo, de amar, de amigos. Dia desses você encontrou a professora primária de português, ela é mãe de uma amiga da sua, essas coisas de cidades pequenas, e ela disse que aluno dela não esquece conjugação verbal, esperando sua confirmação que veio mentirosa, hoje não precisa saber de cor, se tem dúvida o google conjuga para você. A voz grave da mestra hoje aposentada a leva para a sala de aula da terceira, quarta série, o chão vermelho encerado, as carteiras enfileiradas, azuis, pesadas, você lá no fundo, era tudo organizado por ordem de tamanho; fulano, apontava ela, verbo sorrir mais-que-perfeito, o fulano tinha de ficar em pé e recitar eu sorrira tu sorriras ele sorrira nós sorríramos vós sorríreis eles sorriram; será mesmo sorríreis, você se pergunta, não tem o google para lhe soprar, você escreve à mão num bloquinho de notas bem pequenininho, à luz somente do abajur de pouca luz. A professora de português a leva para a de ciências sociais, aquela senhora de quem você gostava muito, amiga da sua avó também professora um dia, mulher do diretor, gorda, baixinha, de braços macios, os quais você adorava apertar fingindo chamá-la. Você percebe que se parar para escrever relembrará de muita coisa da infância esquecida, infância, tema que há um semestre a psicóloga ia começar a trabalhar contigo, mas algo desconhecido teima em adiar; você desenhou aquela menininha uma vez, sem braços, sem pernas, sem boca, e ia pensar um texto sob o ponto de vista dela, mas não fez, faz meses já, quem sabe dia desses não consiga. Já não sabe que horas são, o sono começa a chegar, defuma eu, babá, defuma eu, cantavam no terreiro ao qual você foi uma vez para fazer uma matéria; desde então, faz uns três anos, planeja ir a algumas sessões de umbanda, sentiu-se bem lá, o ambiente a fez sentir numa peça do Zé Celso e a música de preto fez seu sangue vibrar e espirrar invisível pelos poros, além do mais lhe renderia muitas histórias. Mas não era isso que ia dizer, queria saber que horas são, o sino podia bater agora só agora, mas de noite ele cala, horário de silêncio das 22h às 6h; de manhã é um escândalo, não são seis badaladas, são 60 segundos de tilintagens, despertador de uma cidade inteira. Se ainda fosse para avisar que saiu pão quentinho, como fazem algumas padarias da região, tocam um sinal para chamar os clientes. Se tudo fosse diferente, se tudo fosse ao menos. É dia. Como sempre é. Você dorme, os sonhos despertam, seu cérebro continua de olhos arregalados, cheio de pó, dia noite madrugada.

Um comentário:

  1. penso "em como seria escrever ficção sem fortes traços autobiográficos"? Dani, seus textos ficam mto bons do jeito q são
    Vamos na umbanda? e caminhar na beira mar...?

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