04 junho 2010

Indeterminação do sujeito

.....Começou com a cachorra chorando no portão. Isso acontece quando ela fica longo tempo sem ver gente querida, e somente três pessoas a fazem chorar: N, sua dona, Y e Cê, uma amiga da dona. Na verdade, começou com um telefonema.
.....– Alô, afim de dar uma volta?
.....– Caramba, você, nem reconheci. Sim, afim, mas preciso de meia hora.
.....Na verdade mesmo, começou com e-mails, que fizeram com que ela, a dona, pressentisse a visita inesperada no final de semana, como Y pressentira uma vez que ela estaria de esmalte preto para aquele encontro hoje já longínquo no tempo. Era sábado, 15h20. Ele chegou, ela escutou o estardalhaço da cachorra, desligou o feijão, que ficou por acabar, e foi abrir o cadeado. Um abraço tímido, apenas um roçar frouxo de corpos, se é que houve abraço. A euforia da cachorra expulsou as borboletas que os rodeavam e fez com que os quatro meses que passaram sem se ver se misturassem à trivialidade.
.....– Suada...
.....– É, estava num dia de faxina.
.....– Pensei em irmos pra praia.
.....– Ótimo. Está um dia lindo. Vou tomar uma ducha rapidinho; só um segundo.
.....No caminho, pararam num mirante, onde há um café. Lugar todo meigo. Mesas e bancos feitos com toras cruas, almofadas coloridas, chaleiras enferrujadas transformadas em vasos com flores secas, tudo debaixo de um arco de ferro coberto por trepadeiras. Na área interna, quadros naïfs pelas paredes e algumas pessoas com cara de leitoras de Veja. Olharam o cardápio. Uma garrafa de água mineral custava R$ 3,50. Um café expresso pequeno, R$ 3. Pediram dois. E conversaram. Simplesmente conversaram. E conversaram. Na praia, conversaram. O passado, condensado em quase três anos, e o futuro, que perduraria até a velhice, não mais interessavam. O que se vivia ali, naquele instante, bastava. Era tudo o que importava. A conversa, a reaproximação.
.....Depois da praia, expulsos pelo vento gelado do outono, voltaram para a casa dela. Mais café. Para comer, uma receita de pão de queijo que N aprendera com a avó nas últimas férias. Mais conversa, entremeada de silêncios confortáveis. Afinal, Y é uma daquelas pessoas cuja presença a deixa só consigo mesma.
.....Ao cair da noite, a separação. Um roçar frouxo de rostos. Em seguida, ao despontar da primeira estrela, a inquietação. Na casa dos pais, enquanto se arrumava para sair com um amigo, Y remoía indiferenças. N deixou-se ficar na frente do computador, pensando em 140 caracteres. “E aí você fica tremendo por dentro, sem saber o que fazer, o que pensar. Talvez porque não há o que fazer e o que pensar. Só o que há é o frio na barriga.” O frio na barriga. A sensação de tatear o escuro, de não ouvir nada.
.....Será que ela vai ao bar? Ele não a convidou. Apenas comentou algo quando o amigo telefonou para avisar aonde iriam e em que horas o apanharia. No entanto, o boteco acertado era como a segunda casa dela. Ainda com borboletas no estômago, ligou para Cê, também amiga de Y, que se ofereceu para ir junto. Pela internet, um amigo pouco-mais-que-amigo comentou “Eu, nessas ocasiões, acabei sempre indo. Me fodi em todas, mas se rolasse de novo, eu iria”. E, na sua cabeça, martelava um autor desconhecido:

“Mais vale a certeza do não
do que a dúvida do talvez
porque o não passa
e o talvez, talvez.”

.....Fingiu concordar por inteiro com os versinhos meio adolescentes. Tudo a empurrava para o mesmo bar. Checou o horário do próximo ônibus: 23h05. Às 23h40 tinha uma Heineken na mão e já cumprimentara a todos. Uma hora depois, Y se foi. Dessa vez, despediu-se dela com um abraço menos frouxo. Se ele nunca tivesse feito isso, ela ficaria surpresa e intrigada, mas, sabendo que bares e Y têm uma relação bastante dúbia e sabendo que ele havia ido para o apartamento de Cê, assistir a um filme com Bê, namorado da amiga, ficou tranquila.
.....Quando N e Cê chegaram, duas horas mais tarde, Y estava dormindo num colchão no chão. No mesmo quarto, na cama de casal, estava Bê. N tirou a calça jeans e o sutiã que a apertavam. Só de blusa, engatinhou por entre os lençóis e perguntou a Y se podia dormir ali. Resposta afirmativa. Os corpos começaram a se tocar receosamente.
.....– Você tem certeza que quer isso? – pergunta ele, sussurrando.
.....– ...
.....– Uma trepada sem compromissos no meio da noite?
.....– Sim, tenho. Uma trepada sem compromisso no meio da noite... – confirma ela baixinho.
.....E se beijaram como se nenhum dos dois tivesse feito aquilo antes. E, descomedidos, transaram. Não era preciso disfarçar, tamanha a intimidade entre os quatro que estavam ali no quarto. E, inversamente proporcional ao tempo que passaram sem se ver, gozaram.
.....Na manhã seguinte, durante um café com violão, nada havia acontecido. Nenhum resquício de passado, a não ser a música que ele compusera e da qual ela tanto gostava. Depois, na despedida em frente ao terminal de ônibus, um abraço e três palavras:
.....– Bom te ver.
.....E fim. Porque o que passou não mais importa, o que é, já foi, e o que virá, se vier, importará enquanto estiver sendo.

Um comentário:

  1. Como disse o poeta: "que seja eterno enquanto dure".
    Jefhcardoso do
    http://jefhcardoso.blogspot.com

    ResponderExcluir